Quem vê cara não vê coração: dicas valiosas para apreciar uma cerveja pelo que ela é, não pelo que se fala dela. Sim, toda cerveja merece uma segunda chance.
No Papo de outro dia, listei os princípios que sigo à risca no que se refere às cervejas. Me falaram prá dar uma explicada melhor porque havia ficado um papo assim meio abstrato, gasoso e invertebrado. Então vamos lá:
Creio que devo sempre procurar algo bom em cada cerveja que cruzar o meu caminho.
Manja aquela criancinha que, de tão feia acaba ficando “bonitinha”; às vezes nem isso a coitada é, mas ela é prestativa e inteligente e fica ajeitadinha por causa isso? Pois bem: com cerveja acho igual e acho que a pior das piores sempre tem alguma qualidade. Uma das cervejas mais espetaculares que eu vi era imbebível. Por isso que eu falei “vi” ao invés de “bebi”.
Que cor, que cremosidade de espuma! Tirei a foto e joguei fora o conteúdo do copo; até o cheiro era insuportável. E olha que fui eu que fiz. Consegui guardar tudo de bom que ela tinha. Era linda. Creio que não existe criança feia nem cerveja sem ao menos uma qualidade.
Creio que toda cerveja sempre merece uma segunda chance.
Se eu bebo uma cerveja e acho uma droga, eu bebo de novo. Se acho maravilhosa também repito. Salvo nas vezes em que isso é impossível, sempre compro duas garrafas ou duas latas. Fazendo isso eu administro meu nível de ansiedade e expectativa. Já ocorreu de aquela cerveja que me deixou doido por ela no primeiro momento me decepcionar depois.
Acho que gostei dela porque a companhia era boa, o momento agradável. Quando eu ratifico que é excelente, ótimo, bebi duas vezes. Se confirmo que é coisa do cão, xingo com mais convicção. É muito bom quando descubro que aquela moça que inicialmente não suportei, foi vítima de injustiça minha e se redime. Creio que um único julgamento sempre é insuficiente.
Creio que a cerveja deve ser olhada pelo que se propõe a ser.
Acho injusto se dizer isso ou aquilo de uma cerveja sem levar em conta o que ela quer mostrar. Acho que devo tentar alinhar meu entendimento de uma cerveja com aquilo que eu deveria esperar dela, a partir do que foi explicitado por quem a fez.
Sacanagem eu olhar uma prá pilsen da esquina e dizer que é uma droga só por que conheço bem a Duvel. Fusca é Fusca, Ferrari é Ferari. O Fusca nunca quis ser Ferrari, nem pode. Muito menos ser avião. O coitado do fusquinha pode até ser bem conservado, limpinho, único dono, pneu novo, pouco rodado e ter seu valor como Fusca.
Creio que cada cerveja deve ser entendida dentro de sua proposta e somente nela.
Creio que a cerveja é mais importante que o rótulo.
Coisa que procuro praticar é não beber rótulo. Claro que escorrego. Mas tento. Todo mundo um dia já fez a crueldade de trocar o rótulo da garrafa prá sacanear o sogro que é fiel a uma determinada marca de cerveja e o cara nem desconfiou.
Atualmente, com todo o tão falado “amadurecimento do consumidor”, tem gente que ainda bebe rótulo. Tem gente que se vc colocar uma witbier de segunda linha numa garrafa de Hoegaarden ele bebe e elogia. Tem cara que bebe cerveja contaminada e elogia por conta de seu suposto pedigree. Já coloquei, de molecagem, um rótulo comercial em uma cerveja feita por mim e a vítima, até hoje, insiste em não acreditar que foi ludibriado.
Isso é neo-mesmice. E é tão simples: bebo, dou outra chance, gosto ou não gosto. Ponto! Se acho que não bebi o suficiente pra construir uma opinião eu digo:
Foi pouco, não formei opinião
Implico com testes-cegos. Eu não preciso de teste cego pra não ver rótulo por um motivo muito simples: eu não minto pra mim. Creio que a convicção de gostar ou não, do que quer que seja, abre horizontes.
Creio na importância da intimidade e na falta de pré-conceitos no trato com a cerveja.
Essa crença complementa as anteriores. Comecei a beber cervejas no tempo em que conseguir qualquer material sobre elas era quase impossível. Bebi cervejas de diversos estilos e a única referência que eu tinha, além do que vinha escrito no rótulo, era meu paladar. E a gente sabe que os rótulos ensinam muito pouco ou nada mesmo.
Cabe aqui um exemplo. Entrei na Hofbräu Haus, em Munique, em 1987 e pedi “a mais típica”. Me serviram a primeira weissbier da minha vida e eu a achei estranha. O novo surpreende, é claro. Mas insisti. Bebi outra weiss, e outra, e outra; após várias, de várias marcas, olhando para essa cerveja como uma bebida “diferente”, eu consegui formar meu juízo pessoal sobre o que eu gostava e o que eu não gostava nessa “nova bebida”.
Aí, já íntimo das weiss, encontrei uma referência que me disse o que esse estilo deveria me oferecer. Aprendi sem conceitos anteriores – ou pré-conceitos. Creio que a intimidade buscada antes de qualquer conceito educa muito o paladar.
Creio que as cervejas não podem ser avaliadas pela origem.
Com pessoas é a mesma coisa. Já bebi belgas horrorosas e me surpreendi com uma cerveja do Zimbabwe, lugar de muito pouca tradição. Nem todo batuque é samba. Nem toda cerveja alemã é excelente e nem toda haitiana é ruim. Aliás, uma delas, Prestige Lager, já ganhou a World Beer Cup. Creio que conceitos ou juízos emitidos sobre uma cerveja têm que ser isentos de qualquer idéia de procedência.
Creio que a cerveja merece respeito.
Não posso me ferir por beber excessivamente ou incomodar quem bebe comigo por falta de compustura minha por beber mais do que o copo. Não posso sentar em banco de motorista com mais cervejas no sangue do que bom-senso na cabeça. Sem hipocrisia, reconheço que já fiz essa imbecilidade. Me arrependo, há muito não faço.
Curto a cerveja como bebida gregária que é, que aproxima, traz paz, boa convivência. Por consideração a um amigo, bebo até o que não gosto. Em contrapartida, em mesa que tem bundão não bebo nem de graça, em consideração à cerveja. Bebo cerveja com quem pratica a alegria a descontração e não esporro e algazarra. Creio piamente que cerveja é coisa séria.
Qualquer dia a gente papeia de novo.
Pão e cerveja,
Lud Gelbinsk